Etanol rende mesmo tudo isso? O que ninguém conta sobre o consumo real nos carros flex
Se você abastece com etanol esperando rodar muito e gastar pouco, talvez esteja acreditando em um mito — ou em uma promessa que só valeu décadas atrás. A verdade é que, hoje, mesmo com toda a tecnologia disponível nos veículos modernos, é quase impossível alcançar médias de consumo acima de 18 km/l com etanol. Sim, estamos falando de um cenário em que nem mesmo carros novos, em rodovias e com condução eficiente, conseguem esse feito.
Ainda assim, há registros históricos que mostram que esse rendimento já foi possível. E mais: com carros simples e sem eletrificação alguma. A grande pergunta é: o que mudou de lá pra cá? A resposta está em uma combinação de fatores técnicos, exigências ambientais e até escolhas de mercado que tornaram o consumo eficiente com etanol cada vez mais difícil de atingir.

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Um feito raro, mas que já foi real
No início da década de 1980, a Volkswagen decidiu provar ao mercado o potencial dos seus carros a etanol. Em uma iniciativa curiosa e ambiciosa, promoveu uma competição em São Paulo chamada “Torneio de Economia VW Gol a Álcool”. Participaram 520 taxistas da capital paulista, todos conduzindo o recém-lançado Gol movido exclusivamente a etanol. O objetivo: testar quem conseguia rodar mais com menos combustível.
O percurso era de 37,2 km — 85% dele em ambiente urbano. A dupla vencedora cravou um consumo de 18,32 km/l. Isso mesmo. Em pleno trânsito paulistano, há 41 anos, um carro movido a etanol conseguiu um desempenho que hoje parece inalcançável até para motores modernos com tecnologia embarcada.
Mas antes de lamentar os tempos que não voltam mais, é preciso entender que o cenário daquela época era completamente diferente.
Por que isso não se repete hoje?
De acordo com o engenheiro Renato Romio, do Instituto Mauá de Tecnologia, há uma explicação técnica e bastante razoável para essa diferença. A principal delas envolve o controle de emissões. Nos anos 1980, ainda não havia catalisadores obrigatórios nos veículos, e o Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve) estava apenas começando a ser estruturado no Brasil. Ou seja, os motores podiam operar com configurações que hoje seriam inviáveis do ponto de vista ambiental.
Romio explica que os motores a etanol da época funcionavam com mistura pobre: uma menor quantidade de combustível por volume de ar na câmara de combustão. Isso era possível porque não havia necessidade de manter uma mistura ideal para o funcionamento do catalisador, já que este ainda não fazia parte do sistema de exaustão.

Esse ajuste permitia que o etanol atingisse até 85% da eficiência energética da gasolina, contra os 70% observados atualmente. Em outras palavras, um litro de etanol rendia quase o mesmo que um litro de gasolina, mesmo custando muito menos. Era o auge da competitividade do etanol.
A chegada dos catalisadores mudou tudo
Com a evolução das normas ambientais no Brasil, a partir da década de 1990, os motores precisaram ser ajustados para trabalhar com mistura estequiométrica — ou seja, uma proporção ideal entre combustível e ar que garante a eficiência do catalisador no controle de emissões.
No caso do etanol, essa mudança teve impacto direto na economia de combustível. Como o motor passou a usar mais etanol por ciclo de combustão, o consumo naturalmente aumentou. A mistura deixou de ser pobre e passou a ser mais rica, reduzindo a vantagem energética que o etanol tinha em relação à gasolina.
Esse novo cenário inviabilizou, na prática, o consumo superotimizado que era possível décadas atrás. Ainda que a eficiência térmica dos motores modernos seja superior, o balanço final acaba sendo prejudicado pelo cumprimento das exigências legais de emissão.
O dilema dos motores flex
Outro fator que impactou diretamente o desempenho do etanol foi o advento dos motores bicombustível, os chamados motores flex, introduzidos no Brasil nos anos 2000. À primeira vista, eles pareciam a solução ideal para o consumidor: liberdade para abastecer com qualquer combustível, na proporção que quiser.
Na prática, porém, os motores flex são uma solução de compromisso. Para funcionar bem tanto com gasolina quanto com etanol, precisam ter uma taxa de compressão intermediária. Isso significa que não estão plenamente otimizados para nenhum dos dois combustíveis.
O etanol, por exemplo, tem melhor rendimento em motores com taxas de compressão mais altas, algo que a gasolina não suporta. Com isso, perde-se parte da eficiência que um motor dedicado exclusivamente ao etanol poderia alcançar.
Romio é categórico ao afirmar: “O motor flex, apesar de versátil, compromete a eficiência dos dois combustíveis. É uma engenharia que prioriza a conveniência, e não o desempenho máximo de cada combustível individualmente.”
Motores 100% a etanol: uma solução esquecida
Cientes desse problema, algumas montadoras chegaram a explorar a possibilidade de lançar motores exclusivamente a etanol nos últimos anos. A antiga FCA (Fiat Chrysler Automobiles), por exemplo, chegou a anunciar o desenvolvimento de um motor turbo totalmente movido a etanol. O objetivo era justamente aproximar o rendimento dos motores flex ao desempenho ideal que o combustível poderia oferecer.
No entanto, o projeto acabou sendo cancelado. A justificativa não foi técnica, mas sim comercial. As pesquisas de mercado indicaram que o consumidor brasileiro ainda não confia plenamente no etanol como única fonte de energia. As incertezas relacionadas à entressafra da cana-de-açúcar, variações de preço, impacto do clima e competição com o açúcar na cadeia produtiva tornaram o projeto inviável do ponto de vista da aceitação.
Ou seja, mesmo com potencial técnico, o motor 100% a etanol foi engavetado por falta de apoio do consumidor. O resultado é que continuamos presos à realidade dos motores flex e aos seus compromissos técnicos.

Ainda há futuro para o etanol?
Apesar de todas essas limitações, o etanol segue sendo uma alternativa relevante no cenário energético brasileiro. Ele é renovável, de produção nacional, e gera menos emissões de CO₂ em comparação com os combustíveis fósseis. No entanto, sua eficiência energética continua sendo o principal obstáculo.
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Hoje, mesmo os motores mais modernos dificilmente ultrapassam os 10 a 11 km/l de etanol em uso urbano. Em rodovias, esse número pode chegar a 13 ou 14 km/l, mas dificilmente se aproxima dos 18 km/l registrados há quatro décadas, mesmo com todas as evoluções tecnológicas.
Romio acredita que ainda é possível chegar perto dos 80% de rendimento energético em relação à gasolina, mesmo nos padrões atuais, desde que se invista novamente em motores dedicados. Mas para isso acontecer, seria necessário um compromisso maior do setor automotivo — e, principalmente, uma mudança na percepção do consumidor.